NO
ÚLTIMO SÁBADO (santo) de março, na
Lapa, dez minutos depois de ter descido
do ônibus chegando de Curitiba, por mera
sorte conseguimos encontrar o rei do
Congo no lugar onde ele exerce sua
profissão, quer dizer no açougue de um
supermercado da Lapa, de fato idêntico
aos outros do resto do Paraná, da ilha
de Sicília e do Congo. Miguel Ferreira
secou-se as mãos no avental e com um
largo sorriso avançou à nossa volta
pelo outro lado do balcão do açougue.
Como todos os reis, visto de perto ficava
menos sagrado. Nos marcou audiência na
sua própria casa, na mesma tarde bem
perto, e voltou aos seus afazeres no
açougue pois tinha que atender seus
clientes.
Tendo a intenção de estudar o lugar no
estilo mas adequado à indolência
daquele dia semiferiado, demos uma
voltinha pela Lapa acompanhados pela
nossa guia. Gostamos da comida tropeira
acompanhando com um vinho colonial bem
frio, quiçuá tirado do frigobar do rei
Miguel. Pegamos um taxi e chegamos tarde
à sua casa, nos arredores da Lapa. Tanto
faz, aqui a gente nunca mais chega à
hora
Prejuizos! Miguel já tinha voltado ao
trabalho, tendo a delicadeza de
encarregar seu irmão Ney para que nos
esperasse. O Ney, embaixador da Angola,
estava no meio da corte vigiando entre
roupa lavada e meninos brincando. Nos
guiou até a embaixada, entrou primeiro e
nos apresentou à sua familia.
 |
xx1x |
Ney é The
Best of..., anuncia a sua
camiseta cor de gelo. Entramos na
sala, onde há uma estante
coberto por um plástico
transparente, com uma coleção
de medalhas e a santeria do
costume. Havia um São Benedito,
the Best of, em posição
de sentido. Na cozinha havia
outro, de batalha. São Benedito
é o advogado das amas de panelas
e dos panificadores, afropadeiros
de Salvador bem como portugueses
paulistanos, mestres em pães de
queijo que a qualquer hora e por
qualquer lugar do Brasil fazem a
gente sonhar voando ao paladar
sozinhos. Foi sempre ele que
inspirou às cozinheiras da Lapa
aquela delicia da coxinha de
farofa, que em lugar de carne de
frango contem um recheio de carne
picada de frango e farofa dentro
duma fita de massa enrolada e
enroscada ao final simulando
ossinho de coxinha.
Logo a conversa
caiu no Caderno. Eis a sua
história contada.
|
|
|
|
O Gaucho, negro
como Miguel e Ney, apareceu na
Lapa inopinadamente num dia
qualquer de 1959, a pès livres,
não como nôs que chegamos aqui
no ônibus das dez e meia, os
pés escravos dos sapatos. Só
ele sabia de onde chegava. Parou
na porta da casa do rei do Congo,
que então era Sebastião
Quintino, e lhe entregou o
Caderno da Congada.
A capa do Caderno era de cor
negra e bexigosa como os
canhenhos Moleskine e as costas
das mãos do Gaucho. Seus cortes
eram duma cor encarnada com veios
escuros como as palmas das mãos
do Gaucho. Naqueles tempos
Sebastião Quintino reinava na
familia dos negros da Lapa, todos
da cor do Caderno.
O Gaucho tinha chegado de
propósito para encontrar a
antiga comunidade da Lapa. Beijou
o Caderno antes de o entregar ao
rei do Congo. Pediu-lhe para
instruir os meninos e de aprender
de cor a Congada, pois tinha que
ser feita como uma vez, tal e
qual, sem perder uma palavra e
com os passos certos. Daquela
dança o pai de Miguel, que
então era jovem, lembrava alguma
coisa mas não tudo. Pelo
contrário sabia muito bem, como
o mesmo Gaúcho confirmou ao rei
Quintino antes de meter- se rumo
à merceria, que São Benedito
tinha a pele da cor do pão de
queijo, e pintava a sua cara de
negro para proteger aos escravos.
Prejuizos!
Isto sabe o Ney, embaixador da
Angola, e isto diz. O Caderno
está na posse do rei Miguel, o
Ney tem só o fascículo impresso
que lhe mandou de São Paulo o
professor que transcreveu o
Caderno. Ney já o tinha tomado
não sabemos de onde, e o está a
manusear com cuidado. Entrega-nos
para que o podamos folhear, e
começa contar da Congada.
|
|
 |
 |
|