O Caderno
do Gaucho


de Alessandro Dell'Aira

tradução portuguesa:
Semiramis Maria Amorim


 



FOTOS:
Semiramis Maria Amorim
Alessandro Dell'Aira




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NO ÚLTIMO SÁBADO (santo) de março, na Lapa, dez minutos depois de ter descido do ônibus chegando de Curitiba, por mera sorte conseguimos encontrar o rei do Congo no lugar onde ele exerce sua profissão, quer dizer no açougue de um supermercado da Lapa, de fato idêntico aos outros do resto do Paraná, da ilha de Sicília e do Congo. Miguel Ferreira secou-se as mãos no avental e com um largo sorriso avançou à nossa volta pelo outro lado do balcão do açougue. Como todos os reis, visto de perto ficava menos sagrado. Nos marcou audiência na sua própria casa, na mesma tarde bem perto, e voltou aos seus afazeres no açougue pois tinha que atender seus clientes.

Tendo a intenção de estudar o lugar no estilo mas adequado à indolência daquele dia semiferiado, demos uma voltinha pela Lapa acompanhados pela nossa guia. Gostamos da comida tropeira acompanhando com um vinho colonial bem frio, quiçuá tirado do frigobar do rei Miguel. Pegamos um taxi e chegamos tarde à sua casa, nos arredores da Lapa. Tanto faz, aqui a gente nunca mais chega à hora…

Prejuizos! Miguel já tinha voltado ao trabalho, tendo a delicadeza de encarregar seu irmão Ney para que nos esperasse. O Ney, embaixador da Angola, estava no meio da corte vigiando entre roupa lavada e meninos brincando. Nos guiou até a embaixada, entrou primeiro e nos apresentou à sua familia.


xx1x Ney é “The Best of...,” anuncia a sua camiseta cor de gelo. Entramos na sala, onde há uma estante coberto por um plástico transparente, com uma coleção de medalhas e a santeria do costume. Havia um São Benedito, “the Best of”, em posição de sentido. Na cozinha havia outro, de batalha. São Benedito é o advogado das amas de panelas e dos panificadores, afropadeiros de Salvador bem como portugueses paulistanos, mestres em pães de queijo que a qualquer hora e por qualquer lugar do Brasil fazem a gente sonhar voando ao paladar sozinhos. Foi sempre ele que inspirou às cozinheiras da Lapa aquela delicia da coxinha de farofa, que em lugar de carne de frango contem um recheio de carne picada de frango e farofa dentro duma fita de massa enrolada e enroscada ao final simulando ossinho de coxinha.

Logo a conversa caiu no Caderno. Eis a sua história contada.
     
O Gaucho, negro como Miguel e Ney, apareceu na Lapa inopinadamente num dia qualquer de 1959, a pès livres, não como nôs que chegamos aqui no ônibus das dez e meia, os pés escravos dos sapatos. Só ele sabia de onde chegava. Parou na porta da casa do rei do Congo, que então era Sebastião Quintino, e lhe entregou o Caderno da Congada.

A capa do Caderno era de cor negra e bexigosa como os canhenhos Moleskine e as costas das mãos do Gaucho. Seus cortes eram duma cor encarnada com veios escuros como as palmas das mãos do Gaucho. Naqueles tempos Sebastião Quintino reinava na familia dos negros da Lapa, todos da cor do Caderno.

O Gaucho tinha chegado de propósito para encontrar a antiga comunidade da Lapa. Beijou o Caderno antes de o entregar ao rei do Congo. Pediu-lhe para instruir os meninos e de aprender de cor a Congada, pois tinha que ser feita como uma vez, tal e qual, sem perder uma palavra e com os passos certos. Daquela dança o pai de Miguel, que então era jovem, lembrava alguma coisa mas não tudo. Pelo contrário sabia muito bem, como o mesmo Gaúcho confirmou ao rei Quintino antes de meter- se rumo à merceria, que São Benedito tinha a pele da cor do pão de queijo, e pintava a sua cara de negro para proteger aos escravos. Prejuizos!

Isto sabe o Ney, embaixador da Angola, e isto diz. O Caderno está na posse do rei Miguel, o Ney tem só o fascículo impresso que lhe mandou de São Paulo o professor que transcreveu o Caderno. Ney já o tinha tomado não sabemos de onde, e o está a manusear com cuidado. Entrega-nos para que o podamos folhear, e começa contar da Congada.